“O anonimato de um espetáculo”
Sábado, dezesseis horas e trinta minutos.
O outono iniciara há um bom tempo, mas, um dia atípico, convidativo para um mergulho, furar umas ondas, rolar na areia, transformar-se em um saudável bife à milanesa, e descansar preguiçosamente em uma das quarenta e duas praias que rodeiam a Ilha da Magia. Para atiçar-lhes à vontade, os ônibus e os veículos de passeios passavam repletos de banhistas, muitos com a pele avermelhada lembrando “camarão ao bafo”.
Um dia, realmente quente, com sol inclemente de dias de verão, nenhuma brisa para aliviar o esforço do transeunte que subia a rua íngreme que dá acesso ao Morro da Penitenciária. Um único elemento se movia rapidamente, era a gota de suor que descia a face brotada da fronte vincada pelo tempo.
O céu anil era preenchido por coloridas pipas que insistiam em voar, cada vez mais alto, para fugir do mormaço produzido pelos telhados de zinco, travando verdadeiras batalhas aéreas, na tentativa de fuga do corte de linha tratado a cerol, executando acrobacias e mergulhos durante a fuga.
Cansativa e estafante caminhada, andando em zigue-zague pela rua de paralelepípedos deslocados pela correnteza das águas da chuva, quão penoso e cansativo é para um morador de morro chegar a sua residência após um dia de trabalho.
As complexidades topográficas e econômicas separam as classes sociais por uma simples rua. Outro lado, a classe média alta, com luz, água, telefone, carros novos, belos jardins, altos e imponentes muros, dourados números identificando-lhes a residência; e do outro, a classe de baixa renda, sofrida, sem infra- estrutura, sem saneamento básico, sem água, sem rua e sem o numeral identificando-lhes o ponto de chegada, mas a natureza é igualmente generosa no visual que os presenteia.
Chego ao local denominado “Grota”. A palavra correta seria Gruta, devido à imagem da Nossa Senhora da Aparecida, padroeira da localidade ali inserida. No local um pequeno cruzeiro de madeira de uma árvore cujo nome não recordo, mas a tradição dos seguidores do Beato João Maria, afirmam que na comunidade onde fincassem a cruz e esta prosperassem, essa comunidade também irá prosperar.
A primeira etapa estava vencida. Ufa! faltava um outro tanto, mais estafante...
Fôlego renovado, o difícil estava por vir.
Começa a íngreme e longa escadaria irregular, com lances e patamares alta odores e fragrâncias dos mais diversos temperos, exalavam pelas janelas e frestas dos casebres.
A escadaria é o elemento de ligação do heterogêneo grupo de habitantes. Ao longo dela, moradores trocam idéias, divulgam notícias de batismo, aniversário, compra, venda tomam chimarrão, contam piadas, atualizam endereços, organizam excursões, enfim, é o”point” de encontro dos moradores.
A solidária escadaria acolhe tanto a garota sonhadora que saltita quanto o confeiteiro preocupado que interrompe uma boa conversa para preparar a sua encomenda de bolo “Sonho de Valsa” e outros, Sonhos ou Valsas... .
A aculturação da língua inglesa também se faz presente em vários cardápios escritos nas paredes dos botequins: x salada, x eggs, hot dog... .
Várias crianças brincam de soltar pipa, no local denominado, por eles, de pedrão.
Cumprimentando um, saudando outro, respondendo com acenos, continuo, desviando das pedras e águas de esgoto. Uma passada pela casa do Tio Neno. Mais uma vez aprecio o cenário onde os Quintanas declamariam: “No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar: ... o cheiro que tinha um dia o próprio vento...”.
Vários “boas tardes!, oi!, tudo bem!” Pula aqui, corre lá, passando por ruelas improvisadas, afinal a chegada ao local denominado: “campinho”.
O cenário é deslumbrante, surpreende, embriaga qualquer abstêmio - Avenida Beira Mar, a Universidade Federal, a subida do Morro da Lagoa, o manguezal do Itacorubi, berçário de muitas espécies, e este local parece realmente, ser abençoado pela cruz que está logo acima.
Lembro, então, de Fernando Pessoa ”O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.
O “campinho” é realmente um diminutivo em sua extensão morfológica e geográfica.
-Você já retornou aonde você brincava quando criança? Parecia ser grande, cheio de sonhos, faz de conta e realizações. Quando se retorna já adulto, perde-se a nitidez dos sonhos, as fantasias, tudo parece limitado, estático distante, a árvore que servia de ônibus, cavalo alado, casa, nada mais disso existe, para consolo apenas uma simples árvore e silenciosa.
. . .
O jogo de fantasia na descrição de Tolstoi lembra de crianças brincando com uma velha carruagem. “Um fazia de cocheiro e outro de lacaio, e as meninas ficavam no meio: as três cadeiras eram a tróica de cavalos, e nos púnhamos a caminho. As crianças se reúnem em uma decrépita e abandonada carruagem E que aventuras nos aconteciam nessa viagem imaginária! E com que rapidez se passava os longos e alegres serões de inverno! Se se enxerga tudo com os olhos da razão, já não é possível brincar. E se não se brinca, que nos resta, então?”.
Para o educador Paulo Freire que acedeu ao se comprometer politicamente com a tarefa da recuperação da humanidade do oprimido, relata ao retornar do exílio: “Há pouco tempo, com profunda emoção, visitei a casa onde nasci. Pisei o mesmo chão em que me pus de pé, andei, corri, falei e aprendi a ler. O mesmo mundo – primeiro mundo que se deu à minha compreensão pela“leitura” que dele fui fazendo. Lá, reencontrei algumas das árvores da minha infância. Reconheci-as sem dificuldade. Quase abracei os grossos troncos – os jovens troncos de minha infância. Então, uma saudade que eu costumo chamar de mansa ou de bem comportada, saindo do chão, das árvores, da casa, me envolveu cuidadosamente. Deixei a casa contente, com a alegria de quem re-encontra gente querida”.
Viagens! O belo e crianças emocionam artistas e pensadores intelectuais...
Algumas crianças já brincavam quando cheguei em companhia de mais dois garotos, o “Zé e o Alemão”. Adentramos no Estádio Campinho, “esculpido” em um barranco das escarpas do Morro da Cruz, em chão batido, de oito metros por seis, desafiando as leis da física e da matemática e que apaixonaria Burle Marx em seu paisagismo natural e colorido emoldurante. Passo primeiro por uma sabatina:
O que tio está fazendo? Perdido! Exclama Zuzú.
Perdido!
Tirando fotos? Questiona Re
Apenas passeando...
A embriaguez da beleza do local persiste...
Ao lado leste, verdejante mangue do Itacorubi, Santa Mônica, Universidade, Pantanal, caminhos que vão ao norte da Ilha, Bairro completo da Trindade.
Retorno ao mundo das brincadeiras...
As traves são confeccionadas com pedaços de galhos retorcidos, tamanho aproximado de um metro, denominado “gol fechado”, amarrado com pedaço de tiras de pano e de sacolas plásticas.
De repente, ouço:
Oh! Vamos começar logo o jogo era o Zuzú.
“Zuzú”, garoto de baixa estatura, por volta dos doze anos, loiro oxigenado, traços sofridos, mas feliz por brincar com os amigos, com a camiseta surrada e suada que portava com galhardia mesmo sabendo que o time pelo qual torcia perdera por escore sete, nos pés, tênis sujo e rasgado, mas agüentaria mais algumas batalhas.
Logo um outro interrompe:
Vamos!.
Era o “Zé”. Moreno franzino, sem camiseta, parecendo o cantor “lacraia”. Pensa em futebol diuturnamente, se colocado contra a luz conseguiríamos um raio-X de suas costelas, uma vez que era possível até contar-lhe a costela. Bermuda estilo surfista, gasto, parecia que tinha naufragado e estava à deriva por vários dias, pelo tamanho, certamente, recebera de herança do irmão mais velho, ou de doação, sandálias havaianas de cores diferentes, que importa, se na hora do embate joga descalço, pois assim controla melhor a pelota. Seu nariz escorria com freqüência, mas isso não o importunava.
Talvez uma das razões de chamar o jogo de futebol de “pelada” é porque a bola utilizada estava despida na maior parte do couro, via-se pedaço escuro da câmara de ar, fiapos de linhas, “prontas para fazer depilação”, afirmavam jocosamente os garotos.
Um detalhe marcante transportou-me à infância, ao jogo de futebol, na hora da divisão, quando alguém estava fazendo embaixada ou pianinho, ou chutando ao gol, percebi que aqui também há dificuldades na hora da divisão, a razão talvez seja porque não se sabe quais foram escolhidos.
O terceiro que toma a iniciativa de pedir para parar com a bola é o “Re”, pequeno, porém forte, contrário de Zé, aparência de doze anos, cabelo estilo índio Cherokee, mechas oxigenadas, cheio de vontade e habilidade invejável.
Quarto elemento “Alemão” pelo próprio apelido deduz-se que é um garoto loiro, tez clara, rosto cheio de sardas, aspectos de descendente de alemães, olhos azuis, cabelos curtos ; com a aba do boné posto para o lado direito, camiseta super surrada, rosto e pés sujos e unhas sem cortar há vários dias. Uma das razões do apelido, talvez seja, pela fala ser pouco compreensível, assemelhando a resmungos.
O último a agregar a lista é o Nício, moreno, aparência treze anos, longilíneo, boa habilidade e com boa noção de tempo e espaço, porém apresenta sincinesia na hora do drible coloca a língua para fora, ou retorcia o lábio inferior.
Após várias conversas dividem as equipes e um senta-se ao meu lado e diz:
- Tenho que esperar fazer dois gols, tiro um e faço uma dupla pra joga cumigo.
O jogo flui sem maiores transtornos, uma ou outra entrada mais grave, punido com falta, outro lance duvidoso, um reclama, outro diz que não foi, noutro - “não pedisse falta”.
As comemorações dos “gols” um espetáculo à parte, soma de coreografias homenagens trejeitos dos ídolos do futebol. Criatividade, energia e coordenação motora se complementam.
E o jogo transcorre sem maior discussão ou lances graves, às vezes interrompido quando uma pipa vem, cambaleando feito bêbado, céu abaixo, então os garotos, lançam-se entre as vegetações em busca da mesma. Quando a bola cai entre plantas com espinhos, quem está de tênis é o convidado ao resgate da mesma.
O grande embate se mantém por duas horas, sem preocupação em levar as regras ao pé da letra, quando perdem o interesse, propõem a parada.
Surgem verdadeiros comentaristas estilo “a poderosa”.
Sr. viu o meu gol de letra?
O meu passe de primeira?
E meu chapeuzinho?
Meu passe de calcanhar?
O Sr. viu meu gingado de Robinho?
Descemos até o meio da comunidade, ouvindo os comentários e sentindo o quanto são felizes mesmo com o pouco que têm... Oxalá, um dia se tornem Ronaldinhos ou Robinhos.
Voltando a Fernando Pessoa, momentos inesquecíveis são por certo as alegrias vivenciadas em comunhão; coisas inexplicáveis são pequenos milagres de tornar um simples campinho em verdadeiro Maracanã, com expectadores de clássicos de Fla X Flu ou Sansão. Atividades deste gênero contribuem para o desenvolvimento da auto-estima e da sociabilidade da criança e pessoas incomparáveis são, por certo, pessoas que influenciam positivamente para o desenvolvimento dessas crianças como ser humano.
“A criança que não brinca não é uma criança, mas um adulto que não brinca perdeu para sempre a criança que existe nele”, abençoaria Pablo Neruda ao presenciar tamanha energia no colorido mágico da infância que insiste em sobreviver nos improvisados campinhos de futebol, em várzeas ou em escarpados e desafiadores morros que abrigam esses cidadãos quase invisíveis aos olhares altivos de uma sociedade burguesa e intelectualizada.
De retorno ao início da escadaria, com pernas que insistem em denunciar o cansaço, os olhos extasiados pela beleza da localidade, o cérebro ainda pulsa o poema Prosopopéia de Drummond:
Quem sou eu para te cantar, favela,
que cantas em mim e para ninguém a noite inteira de sexta-feira
e a noite inteira de sábado
e nos desconheces, como igualmente não te conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro: baixou a mim, na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte... melhor, tua vida.
E assim sigo a passo lento morro abaixo e retorno meu último olhar, percebo a noite caindo serenamente sobre o morro, espocando algumas lâmpadas aqui e ali.