quinta-feira, 23 de abril de 2020

O homem corpo


O homem corpo

                                                                                        João Batista Freire

O homem corpo, é o homem que não tem corpo. O homem corpo não tem, ele apenas é. O homem corpo, de si, nada tem, e nada tem que deixar. Ao ir-se, apenas irá, não deixará passos, não deixará rastros. O homem corpo, fabrica lembranças, suas únicas heranças. Não exatamente suas, mas dos outros. É o que restará. O homem corpo é um criador de lembranças, o que lhe dá autoridade para dizer que é eterno. O homem corpo, aquele que apenas é, deixará de si uma, duas, muitas lembranças. E sempre que alguém o lembrar, o homem corpo lá estará.

O viver único


O viver único
                                                                                   João Batista Freire
            Há diversas maneiras de morrer, só uma não consentida; as demais, mais ou menos consentidas, algumas por ignorância, outras por desistência, outras por covardia, outras por fraqueza. Muito peculiar é deixar-se morrer no viver único. A comida única, a música única, a TV única, a internet única, a roupa única, o pensamento único, a política única, o partido único, a educação única, o livro único.
            A recusa da diversidade é o viver único, essa forma de morrer que asfixia a liberdade. É a aceitação das ditaduras, esses sistemas de aprisionamento que tornam a igualdade a maior fonte de lucro de que se tem notícia na história. Por muito tempo as ditaduras foram privilégio dos Estados, os únicos que lucravam com a igualdade. O Mercado, quando elevado à categoria divina, descobriu como fazer delas sua maior fonte de lucro. Curvamo-nos como cordeiros aos pés dessas ditaduras que nos dizem o que comer, o que vestir, o que ouvir. Em troca de tantos benefícios só temos que recusar a diversidade, como se dizer não às crianças, aos negros, às mulheres, aos homossexuais, aos deficientes, aos idosos, acabasse com as diferenças. As ditaduras odeiam as diferenças e julgam que os preconceitos servem de vacina contra elas. Mesmo alguns que clamam e lutam contra as ditaduras políticas, curvam-se às ditaduras não declaradas do viver único.

A falácia da inclusão


A falácia da inclusão
                                                                                               João Batista Freire

            Nestes tempos de discursos sobre diversidade e inclusão, choveram medidas legais para incluir crianças com deficiência nas escolas. Imagino que alguns burocratas de secretarias de educação mandaram fazer carimbos para ficar mais fácil: “Inclua-se!”. O pepino fica para professoras e professores, coordenadoras e coordenadores pedagógicos, diretores e diretoras. Os burocratas do ensino, de maneira geral, entendem inclusão como enfiar dentro de salas de aula pessoas com deficiências, não importa quais sejam. Mas, neste meu breve comentário, passarei longe dessa questão mais específica da deficiência, porque, antes dela, já tínhamos um problema seríssimo de exclusão que pouca gente algum dia quis considerar.
            Colocarei uma situação: de uns anos para cá, todos os que cursam a educação básica, passam 12 anos em escolas, para aprender os conteúdos de disciplinas como a Matemática, o Português, a Geografia, a História, a Química, etc. Os alunos passam esses 12 anos dentro de salas de aula, em carteiras, geralmente individuais e com um espaço de movimentação de mais ou menos meio metro quadrado. Precisam ficar sentados para diminuir sua mobilidade. As salas são retangulares e as carteiras dispostas simetricamente em dois sentidos (nestes tempos de Deleuze parece que estou falando de Foucault). A regra manda que os alunos permaneçam quatro horas por dia nessa imobilidade (por enquanto, até que se consolide a educação de tempo integral). No Brasil temos 200 dias letivos por ano. Fazendo as contas temos um total de 9600 horas de permanência nessa situação ao longo da vida escolar, dos seis anos até os 17 anos mais ou menos. Bons anos, anos de extrema plasticidade, de infância e juventude, anos que a natureza destinou à formação da imaginação, do pensamento concreto e do pensamento virtual, do desenvolvimento das habilidades corporais, da sexualidade, dos projetos de vida, dos rituais de inclusão social, etc. Boa parte desses anos confinados em seus cubículos, para aprender as disciplinas escolares. Aprendem? As avaliações dizem que não. Cada um de nós, fazendo seu inventário de aprendizagens, também diz que não, salvo as exceções.
            Talvez eu já pudesse parar por aqui meu comentário sobre a falácia da inclusão escolar. Nestes tempos de discursos sobre a diversidade, a estrutura escolar, incluindo sua arquitetura, é para formar iguais, é para eliminar as diferenças. Todos sentados e imóveis parecem iguais. Todos em silêncio parecem iguais. Os diferentes são aqueles poucos que escapam a esse sistema, não por sua própria vontade, geralmente, mas por providências de famílias que lhes providenciam outras formas de se preparar para a vida e, um dia, dirigir as vidas dos outros para que elas sejam todas iguais.
            Todos iguais, todos excluídos, exceto as exceções, que não são por acaso.