sexta-feira, 17 de abril de 2020


Metabolismo
 João Batista Freire
           
            No quintal de minha casa cultivei jaboticaba, pitaia, manjericão, pitanga, uva e temperos diversos. Essas plantas, além de nos servirem como alimentos, beneficiam nossa saúde. Por exemplo, a pitaia é antioxidante e favorece o sistema cardiovascular. O manjericão alivia a tosse e diminui o estresse, entre outras qualidades. A pitanga combate doenças inflamatórias. Meu quintal é restaurante e farmácia. Um espaço de maravilhas para os sentidos. Custo a acreditar que um pedaço de terra tão pequeno consiga produzir tanta variedade, como o delicioso sabor da uva, a beleza rosa da pitaia e o cheiro fascinante do alecrim. O quintal é o mesmo, são os mesmos a terra e o sol. Todas essas plantas metabolizam o que conseguem captar do solo e dos raios solares; não há outra fonte, mas não esqueçamos da água, que atua como solvente e reagente nos processos fisiológicos. Processados no sistema metabólico, o que há na terra e o que chega do sol é transformado em vermelho, verde, doce, azedo, antioxidante, refrescante etc. Cada qual ao seu modo, pois que os metabolismos possuem suas particularidades, mesmo seguindo a lei básica que a natureza lhes impõe.
            Bem, mas eu imagino que vocês não tenham a intenção de se tornar agricultores, especialistas em uvas e jaboticabas. Nem eu, que de metabolismos e frutas pouco sei além do prazer que me conferem. Sou é educador, como vários de vocês. O que faço, com muita dedicação e esforço, é tentar educar bem as pessoas que porventura se tornam minhas alunas. Porém, como as plantas, meus alunos também são natureza, e há que se respeitá-la. Metabolizam o que lhes chega, porém, além de alimento físico, recebem informações, colhem experiências, produzem imaginação... Quanto à sua natureza, tais como os vegetais, evidenciam um enorme leque de diversidade: se, numa refeição, dez pessoas comerem arroz, feijão, couve e ovo, o resultado do processo metabólico será diferente para elas. Não precisamos ser especialistas em metabolismo para perceber isso, da mesma maneira como percebemos que os efeitos dos diversos remédios são diferentes em diferentes pessoas.
            Mas, e quando se trata de cultura, isto é, do conhecimento que formamos ao longo da vida? Não é algo que comemos e que nos passa pelo estômago, intestino e pela usina das células. O conhecimento vem da experiência de ver, de ouvir, de pegar, de escrever, de ler, de fazer, de degustar, de refletir, de pensar, de imaginar etc. O conhecimento vem da relação individual e coletiva com as pessoas e as coisas da cultura e da natureza. Tal qual ocorre quando metabolizamos os alimentos, os produtos dessas experiências culturais passam por profundas transformações e viram os produtos que chamamos de conhecimentos. O sistema cognitivo é uma espécie, portanto, de metabolismo cultural. Que ele guarda ligações com o metabolismo biológico não tenho dúvidas, porquanto todo produto cultural possui um substrato natural; não há desvínculo entre natureza e cultura. Apesar disso, esse metabolismo cultural não é como o metabolismo biológico, não tem uma substância física, uma localização geográfica no corpo humano. O metabolismo cultural é uma espécie de saber aprender, ou seja, um saber que nasce com a gente, mas não passa disso. Nascemos sabendo aprender, mas o modo como aprenderemos, as coisas que aprenderemos, o conhecimento que se formará a partir dessa capacidade de aprender, é imprevisível. O fato é que somos capazes de assimilar as informações de todos os tipos que nos chegam e transformá-las em conhecimentos a partir de conhecimentos anteriores, e a partir desse fenômeno primordial, que é a capacidade inata de sermos capazes de aprender.
            Diversidade, essa regra básica da natureza, que faz com que não exista uma pitanga igual a outra, que transforma o mesmo sol e o mesmo solo em roxo, rosa, doce, azedo, ácido, remédio, veneno, que produz o fenômeno da extrema criatividade, tornando cada um dos sete bilhões de seres humanos tanto igual como absolutamente diferente de todos os outros, é a mais desrespeitada de todas as regras, tanto na educação, quanto na política ou nas relações sociais. Estão aí os preconceitos de todos os tipos para testemunhar, num caso extremo, esse desrespeito.
            Mas é claro que não estamos aqui para discutir em profundidade a diversidade quanto à política ou às relações sociais. Nosso tema é a educação. E, por falar em educação, chegamos ao paraíso do desrespeito à diversidade. E não importa se essa educação ocorre no sistema formal de ensino, ao abrigo dos diversos governos, não importa se ocorre no sistema informal, no esporte, na arte ou na religião. Com raras exceções, o desrespeito é a regra. Pode-se imaginar desrespeito maior à diversidade que colocar milhões de crianças nos espaços de meio metro quadrado de carteiras escolares, todos recebendo as mesmas informações e tendo que processá-las da mesma maneira, sob risco de severas punições? De todos os desrespeitos, o que ocorre em salas de aula deve ser o maior de todos em educação. Nelas, as crianças que não podem se expressar livremente, não podem rir ou chorar, não podem dar respostas diferentes, não podem criar. Como se fossem gado engordando para se dirigir ao matadouro.
            O capítulo do desrespeito à diversidade no campo da educação é longo, maior que o espaço que destinei a este ensaio. Vamos a um campo menor, portanto, o esporte. Um campo menor, mas com um enorme potencial educacional. Restringindo mais ainda nosso estudo, fiquemos com o futebol. No Brasil e, provavelmente, em outros países, crianças aprendem futebol, não só em escolas, mas também em suas brincadeiras cotidianas, onde houver espaço para isso. Nas periferias de nossas cidades, nos rincões mais distantes e, particularmente, no Brasil de antigamente, as crianças e os jovens desenvolviam habilidades de altíssimo nível para o futebol. E essa educação para o futebol (também, certamente, para a vida), desrespeitaria a regra básica da natureza, isto é, a diversidade? Não, embora a aprendizagem do futebol seja uma aprendizagem cultural, embora o metabolismo envolvido seja, não só o biológico, mas, também, o cultural, a diversidade é a regra básica da aprendizagem do futebol nas brincadeiras infantis. Nelas, não há um mediador adulto que impeça a expressão da diversidade. Nessa aprendizagem, que chamarei aqui de educação da rua, precursora de uma possível pedagogia da rua, a criança que aprende uma cultura está muito próxima de sua natureza. Ela quer aprender o futebol, diverte-se com isso, por isso há motivação, e percebe que consegue aprender. Não há alguém que diga que ela é igual a todas as outras, não há alguém que diga que ela tem que proceder como todas as outras, não há alguém que a impeça de fazer do jeito dela. Mesmo que ela tenha em mente como modelo um ídolo seu, ainda assim ela terá liberdade de ajustar sua aprendizagem ao seu jeito próprio de fazer as coisas. Seu metabolismo cultural será capaz de transformar gestos do futebol, por mais que os modelos sejam parecidos, com gestos únicos seus, absolutamente originais. Assim como as plantas de meu quintal transformam o mesmo sol e a mesma terra em cores, formas e sabores diferentes, as crianças conseguem transformar os elementos de seus pequenos campos de futebol em gestos diferentes dos gestos de todas as outras crianças.
            Não há mágica nesse processo, há método, porém, sempre ignorado pelos sistemas formais de ensino. Nossa pedagogia oficial é a pedagogia da igualdade, da indiferença face a diversidade. A educação da rua, se podemos chamá-la assim, além de se manter próxima da natureza humana, segue o curso natural da diversidade. Na educação da rua, o que parece mágica chama-se, na realidade, lúdico. É o milagre do lúdico, daquilo que mais nos encanta, daquilo que dá tempero à vida, daquilo onde entramos e não queremos mais sair. Quando brincamos, parece que estamos em nosso ambiente mais normal, mais acolhedor. Na brincadeira, tudo vale a pena. Fazemos, por vezes, enormes sacrifícios para que o jogo não seja interrompido. No jogo somos nós mesmos, diferentes de todos os outros. No jogo podemos levar em conta tudo que acumulamos em nossa história. No jogo, se necessário for, podemos investir no diferente, no novo, e produzir algo que nunca existiu. O jogo é o território da liberdade e da criatividade. Se o futebol brasileiro encantou o mundo um dia, é porque ele foi brincado, foi lúdico, foi livre, criativo e novo.
            O futebol brasileiro foi forjado no jogo, na brincadeira. É bem diferente de quando somos obrigados a cumprir tarefas. Se o técnico define rigidamente as tarefas de cada jogador para um determinado jogo, haverá surpresas, porque o jogo é feito de surpresas, mas elas assustarão os jogadores, que estavam determinados a cumprir um roteiro e a não lidar com surpresas. O que é certo é que não haverá criatividade, pois o cumprimento das tarefas supõe movimentos pré-definidos. Porém, se o técnico define apenas as linhas gerais do jogo junto com seus jogadores e mantém o clima lúdico, garantindo a liberdade de ação de cada um deles, as surpresas não assustarão, fazem parte do jogo. A diferença é que os adversários sofrerão mais surpresas, pois que cada jogador livre criará movimentos inusitados.
            A equipe de futebol criativa é como o quintal de minha casa, exceto pelo fato de que não haverá plantas diferentes; todos serão jogadores de futebol. Porém, assim como não existe uma jaboticaba igual a outra, não haverá jogador igual a outro. Mas, enquanto o metabolismo das plantas, tanto quanto nosso metabolismo biológico, é razoavelmente previsível, o metabolismo cultural dos jogadores é absolutamente imprevisível quando eles são livres para criar. O modo como cada jogador vai metabolizar as diferentes situações é algo que ninguém poderá prever. No entanto, todos serão orientados por um objetivo comum, que é jogar bem e vencer a partida. Orientados por isso, criarão aquilo que julgarem, a cada momento, melhor para os propósitos da equipe. É isso que estou chamando de metabolismo cultural, isto é, o modo como os jogadores processam as informações a cada momento. As plantas de meu quintal recebem luz do sol e nutrientes da terra e metabolizam o que é necessário para sua sobrevivência e reprodução. Os jogadores da equipe criativa recebem informações do técnico, de suas experiências anteriores, dos companheiros, dos adversários etc., e precisam metabolizar tudo isso, transformando esses dados em jogadas criativas e úteis para os objetivos de cada partida.

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