Metabolismo
João Batista Freire
No
quintal de minha casa cultivei jaboticaba, pitaia, manjericão, pitanga, uva e temperos
diversos. Essas plantas, além de nos servirem como alimentos, beneficiam nossa
saúde. Por exemplo, a pitaia é antioxidante e favorece o sistema
cardiovascular. O manjericão alivia a tosse e diminui o estresse, entre outras
qualidades. A pitanga combate doenças inflamatórias. Meu quintal é restaurante
e farmácia. Um espaço de maravilhas para os sentidos. Custo a acreditar que um pedaço
de terra tão pequeno consiga produzir tanta variedade, como o delicioso sabor
da uva, a beleza rosa da pitaia e o cheiro fascinante do alecrim. O quintal é o
mesmo, são os mesmos a terra e o sol. Todas essas plantas metabolizam o que
conseguem captar do solo e dos raios solares; não há outra fonte, mas não
esqueçamos da água, que atua como solvente e reagente nos processos
fisiológicos. Processados no sistema metabólico, o que há na terra e o que
chega do sol é transformado em vermelho, verde, doce, azedo, antioxidante,
refrescante etc. Cada qual ao seu modo, pois que os metabolismos possuem suas
particularidades, mesmo seguindo a lei básica que a natureza lhes impõe.
Bem,
mas eu imagino que vocês não tenham a intenção de se tornar agricultores,
especialistas em uvas e jaboticabas. Nem eu, que de metabolismos e frutas pouco
sei além do prazer que me conferem. Sou é educador, como vários de vocês. O que
faço, com muita dedicação e esforço, é tentar educar bem as pessoas que porventura
se tornam minhas alunas. Porém, como as plantas, meus alunos também são
natureza, e há que se respeitá-la. Metabolizam o que lhes chega, porém, além de
alimento físico, recebem informações, colhem experiências, produzem imaginação...
Quanto à sua natureza, tais como os vegetais, evidenciam um enorme leque de
diversidade: se, numa refeição, dez pessoas comerem arroz, feijão, couve e ovo,
o resultado do processo metabólico será diferente para elas. Não precisamos ser
especialistas em metabolismo para perceber isso, da mesma maneira como
percebemos que os efeitos dos diversos remédios são diferentes em diferentes
pessoas.
Mas,
e quando se trata de cultura, isto é, do conhecimento que formamos ao longo da
vida? Não é algo que comemos e que nos passa pelo estômago, intestino e pela
usina das células. O conhecimento vem da experiência de ver, de ouvir, de
pegar, de escrever, de ler, de fazer, de degustar, de refletir, de pensar, de
imaginar etc. O conhecimento vem da relação individual e coletiva com as
pessoas e as coisas da cultura e da natureza. Tal qual ocorre quando
metabolizamos os alimentos, os produtos dessas experiências culturais passam
por profundas transformações e viram os produtos que chamamos de conhecimentos.
O sistema cognitivo é uma espécie, portanto, de metabolismo cultural. Que ele
guarda ligações com o metabolismo biológico não tenho dúvidas, porquanto todo
produto cultural possui um substrato natural; não há desvínculo entre natureza
e cultura. Apesar disso, esse metabolismo cultural não é como o metabolismo
biológico, não tem uma substância física, uma localização geográfica no corpo
humano. O metabolismo cultural é uma espécie de saber aprender, ou seja, um
saber que nasce com a gente, mas não passa disso. Nascemos sabendo aprender,
mas o modo como aprenderemos, as coisas que aprenderemos, o conhecimento que se
formará a partir dessa capacidade de aprender, é imprevisível. O fato é que
somos capazes de assimilar as informações de todos os tipos que nos chegam e
transformá-las em conhecimentos a partir de conhecimentos anteriores, e a
partir desse fenômeno primordial, que é a capacidade inata de sermos capazes de
aprender.
Diversidade,
essa regra básica da natureza, que faz com que não exista uma pitanga igual a
outra, que transforma o mesmo sol e o mesmo solo em roxo, rosa, doce, azedo,
ácido, remédio, veneno, que produz o fenômeno da extrema criatividade, tornando
cada um dos sete bilhões de seres humanos tanto igual como absolutamente
diferente de todos os outros, é a mais desrespeitada de todas as regras, tanto
na educação, quanto na política ou nas relações sociais. Estão aí os
preconceitos de todos os tipos para testemunhar, num caso extremo, esse
desrespeito.
Mas
é claro que não estamos aqui para discutir em profundidade a diversidade quanto
à política ou às relações sociais. Nosso tema é a educação. E, por falar em
educação, chegamos ao paraíso do desrespeito à diversidade. E não importa se
essa educação ocorre no sistema formal de ensino, ao abrigo dos diversos
governos, não importa se ocorre no sistema informal, no esporte, na arte ou na
religião. Com raras exceções, o desrespeito é a regra. Pode-se imaginar
desrespeito maior à diversidade que colocar milhões de crianças nos espaços de
meio metro quadrado de carteiras escolares, todos recebendo as mesmas
informações e tendo que processá-las da mesma maneira, sob risco de severas
punições? De todos os desrespeitos, o que ocorre em salas de aula deve ser o
maior de todos em educação. Nelas, as crianças que não podem se expressar
livremente, não podem rir ou chorar, não podem dar respostas diferentes, não
podem criar. Como se fossem gado engordando para se dirigir ao matadouro.
O
capítulo do desrespeito à diversidade no campo da educação é longo, maior que o
espaço que destinei a este ensaio. Vamos a um campo menor, portanto, o esporte.
Um campo menor, mas com um enorme potencial educacional. Restringindo mais
ainda nosso estudo, fiquemos com o futebol. No Brasil e, provavelmente, em
outros países, crianças aprendem futebol, não só em escolas, mas também em suas
brincadeiras cotidianas, onde houver espaço para isso. Nas periferias de nossas
cidades, nos rincões mais distantes e, particularmente, no Brasil de
antigamente, as crianças e os jovens desenvolviam habilidades de altíssimo
nível para o futebol. E essa educação para o futebol (também, certamente, para
a vida), desrespeitaria a regra básica da natureza, isto é, a diversidade? Não,
embora a aprendizagem do futebol seja uma aprendizagem cultural, embora o
metabolismo envolvido seja, não só o biológico, mas, também, o cultural, a
diversidade é a regra básica da aprendizagem do futebol nas brincadeiras
infantis. Nelas, não há um mediador adulto que impeça a expressão da
diversidade. Nessa aprendizagem, que chamarei aqui de educação da rua,
precursora de uma possível pedagogia da rua, a criança que aprende uma cultura
está muito próxima de sua natureza. Ela quer aprender o futebol, diverte-se com
isso, por isso há motivação, e percebe que consegue aprender. Não há alguém que
diga que ela é igual a todas as outras, não há alguém que diga que ela tem que
proceder como todas as outras, não há alguém que a impeça de fazer do jeito
dela. Mesmo que ela tenha em mente como modelo um ídolo seu, ainda assim ela
terá liberdade de ajustar sua aprendizagem ao seu jeito próprio de fazer as
coisas. Seu metabolismo cultural será capaz de transformar gestos do futebol,
por mais que os modelos sejam parecidos, com gestos únicos seus, absolutamente
originais. Assim como as plantas de meu quintal transformam o mesmo sol e a mesma
terra em cores, formas e sabores diferentes, as crianças conseguem transformar
os elementos de seus pequenos campos de futebol em gestos diferentes dos gestos
de todas as outras crianças.
Não
há mágica nesse processo, há método, porém, sempre ignorado pelos sistemas
formais de ensino. Nossa pedagogia oficial é a pedagogia da igualdade, da
indiferença face a diversidade. A educação da rua, se podemos chamá-la assim,
além de se manter próxima da natureza humana, segue o curso natural da
diversidade. Na educação da rua, o que parece mágica chama-se, na realidade,
lúdico. É o milagre do lúdico, daquilo que mais nos encanta, daquilo que dá
tempero à vida, daquilo onde entramos e não queremos mais sair. Quando
brincamos, parece que estamos em nosso ambiente mais normal, mais acolhedor. Na
brincadeira, tudo vale a pena. Fazemos, por vezes, enormes sacrifícios para que
o jogo não seja interrompido. No jogo somos nós mesmos, diferentes de todos os
outros. No jogo podemos levar em conta tudo que acumulamos em nossa história.
No jogo, se necessário for, podemos investir no diferente, no novo, e produzir
algo que nunca existiu. O jogo é o território da liberdade e da criatividade.
Se o futebol brasileiro encantou o mundo um dia, é porque ele foi brincado, foi
lúdico, foi livre, criativo e novo.
O
futebol brasileiro foi forjado no jogo, na brincadeira. É bem diferente de
quando somos obrigados a cumprir tarefas. Se o técnico define rigidamente as
tarefas de cada jogador para um determinado jogo, haverá surpresas, porque o
jogo é feito de surpresas, mas elas assustarão os jogadores, que estavam
determinados a cumprir um roteiro e a não lidar com surpresas. O que é certo é
que não haverá criatividade, pois o cumprimento das tarefas supõe movimentos
pré-definidos. Porém, se o técnico define apenas as linhas gerais do jogo junto
com seus jogadores e mantém o clima lúdico, garantindo a liberdade de ação de
cada um deles, as surpresas não assustarão, fazem parte do jogo. A diferença é
que os adversários sofrerão mais surpresas, pois que cada jogador livre criará
movimentos inusitados.
A
equipe de futebol criativa é como o quintal de minha casa, exceto pelo fato de
que não haverá plantas diferentes; todos serão jogadores de futebol. Porém,
assim como não existe uma jaboticaba igual a outra, não haverá jogador igual a
outro. Mas, enquanto o metabolismo das plantas, tanto quanto nosso metabolismo
biológico, é razoavelmente previsível, o metabolismo cultural dos jogadores é
absolutamente imprevisível quando eles são livres para criar. O modo como cada
jogador vai metabolizar as diferentes situações é algo que ninguém poderá
prever. No entanto, todos serão orientados por um objetivo comum, que é jogar
bem e vencer a partida. Orientados por isso, criarão aquilo que julgarem, a
cada momento, melhor para os propósitos da equipe. É isso que estou chamando de
metabolismo cultural, isto é, o modo como os jogadores processam as informações
a cada momento. As plantas de meu quintal recebem luz do sol e nutrientes da
terra e metabolizam o que é necessário para sua sobrevivência e reprodução. Os
jogadores da equipe criativa recebem informações do técnico, de suas
experiências anteriores, dos companheiros, dos adversários etc., e precisam
metabolizar tudo isso, transformando esses dados em jogadas criativas e úteis
para os objetivos de cada partida.
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